Bofetadas e privação de idas à casa de banho. Mães relatam agressões nas escolas:

Lusa- Por causa de episódios em que funcionários deram bofetadas, puxões de orelhas e de cabelos ou impuseram castigos com privação de recreios ou de idas à casa de banho aos alunos, está a circular a petição “Pelo fim da violência contra crianças nas escolas portuguesas”.
Os casos são tão ou mais chocantes quando se tratam de crianças com deficiências e incapacidades.

Há dois anos, Theo passou a ser abrangido pelas necessidades especiais devido ao défice de desenvolvimento global, que compromete a sua compreensão e fala, mantendo, por enquanto, o diagnóstico em aberto para Perturbação do Espectro do Autismo.

Maria Venâncio, mãe de Theo, soube do episódio por Alexandra Jorge, coordenadora da Escola Básica Manuel Coco, em Odivelas, quando esta lhe telefonou a contar o desentendimento entre o filho e a auxiliar.

Pessoalmente, e já na presença também da diretora da escola e do diretor-geral do agrupamento escolar, Maria Venâncio recebeu um pedido de desculpa sobre o caso que o seu filho nunca chegou a contar em casa. “O Theo fala, mas não consegue passar uma narrativa completa”, justifica a mãe.

Às queixas apresentadas na escola, no agrupamento e na autarquia (responsável pela atribuição das auxiliares), seguiu-se a queixa-crime formalizada na PSP, através do programa Escola Segura.

Nos últimos três anos letivos, as ocorrências criminais por ofensas corporais têm vindo a diminuir:

De 1.151 em 2018/2019, para 901 em 2019/2020 e 751 em 2020/2021. Fica por enumerar quantas são de adultos que agridem as crianças.

Theo continua a ir para a escola; já à auxiliar foi instaurado um processo disciplinar e afastada da rede de ensino.

Maria Venâncio luta pelo fim do “corporativismo”. “As colegas não podem proteger a auxiliar. Limparam o sangue da cara do meu filho e não informaram a direção da escola”.

Não é a atuação da área pedagógica da escola que Maria questiona, até porque considera que o filho “é acompanhado pela professora principal e uma outra professora de apoio ao ensino especial, ambas sempre cumprindo trabalho de excelência”.

“O grito não é esse. Quero que o crime que aconteceu dentro da escola seja punido. Da parte da Câmara Municipal não tenho grandes esperanças”, lamenta a encarregada de educação.

Sobre o caso, contactada a direção da escola e do agrupamento de escolas, responderam à VISÃO:

-“A direção do AE Moinho da Arroja, no momento em que tomou conhecimento do ocorrido, contactou a CM de Odivelas, entidade empregadora da assistente operacional, para proceder à suspensão imediata de funções. No mesmo imediato deu início à instauração de inquérito de averiguações e à implementação de medidas de acompanhamento e de apoio psicológico e emocional junto do aluno. Salienta-se que o AE dispõe de um projeto educativo promotor da multiculturalidade e da inclusão, que tem permitido envolver a comunidade, mitigar e dar resposta aos fatores de diversidade do dia-a-dia.”

A união continua a ser uma força:

É por causa de casos como o de Theo, entretanto divulgado na imprensa brasileira, pela revista online Coluna de Terça, que têm surgido outros relatos. “Quando uma mãe tem coragem para a denúncia, as outras seguem-na. Perdem um pouco o medo de represálias”, constata Maria.

De entre as cerca de 80 denúncias já recebidas pela revista online quinzenal, fundada por Anderson França, escritor e roteirista, antigo colunista do jornal Folha de São Paulo, a maior parte é sobre crianças forçadas a comer, algumas até ao ponto de vomitar; crianças que sofrem bullying dos seus colegas porque os castigos aplicados são coletivos; reguadas nas mãos e na cabeça e apertões nos braços; incompreensão do sotaque brasileiro.

“Não parece que os educadores escolham as crianças brasileiras em particular, mas foram os brasileiros que vieram ter connosco para denunciar os casos”, conta Cíntia Rocha, jornalista e diretora da Coluna de Terça.

Com mais ou menos denúncia mediática e exposição pública, todos os pais e encarregados de educação cujos filhos sofram uma agressão, física ou psicológica, por parte de um adulto, funcionário da escola, podem e devem sempre fazer uma queixa formal.

O medo de represálias:

Renata de Faria Brasileiro é a autora da petição pública “Pelo fim da violência contra crianças nas escolas portuguesas” que já foi assinada por mais de 1.450 pessoas.

No texto dirigido ao Ministério da Educação, os signatários “solicitam a elaboração de recomendações, normas e punições sumárias aos responsáveis pelas agressões e abusos, com o objetivo de promover uma rápida mudança de cultura em relação à violência contra qualquer criança nas instituições de ensino portuguesas.

Requerem ainda que a investigação das queixas de violência contra crianças em ambiente escolar seja realizada por comissão externa à escola, que possa atuar de forma imparcial, incluindo representantes dos Encarregados de Educação e do corpo discente, considerando que é comum que os pais e alunos sejam descredibilizados quando denunciam situações de violência aos coordenadores ou diretores escolares.”

Renata tem um filho de 13 anos que sofre de autismo leve e os problemas que existiram na escola primária, em que a professora dizia que ele era preguiçoso, negando o diagnóstico, não transitaram para a preparatória.
Para contornar a situação, Renata teve apoio do Agrupamento de Escolas de Carcavelos.
Por participar no grupo “Atípicos”, criado em 2018 no WhatsApp, tem tido conhecimento de vários desabafos, relatos e denúncias de pais e mães insatisfeitos com algumas situações pelas quais os seus filhos passam nas escolas.
“Agressões são cinco a seis casos. Volta e meia há um relato de violência, se não física, psicológica, uma bofetada, um puxão de orelha, um soco na boca, um puxão de cabelo, uma humilhação, exclusão e ofensa”, lembra Renata que, no ano passado, denunciou à Unicef, que lhe respondeu que iriam investigar. “As mães têm medo que os filhos sofram a retaliação na escola”, assegura.

Aos cerca de 70 membros do grupo “Atípicos” interessa-lhes que “as crianças sejam protegidas independentemente da nacionalidade”, mas Renata repara nos comentários e alguns ainda apoiam a violência física praticada por auxiliares ou professores dentro da escola. “Há uma naturalização da violência contra as crianças”, perceciona Renata.

“Estamos unidos pelas crianças e não pela nacionalidade”, corrobora Cláudia Loureiro, portuguesa e mãe de Isabel, uma menina de 14 anos com 95% de incapacidade derivada do autismo, diagnosticado há cerca de quatro anos, e cegueira total desde a nascença.

“Só com o crescimento percebi que havia mais do que a cegueira e o desenvolvimento da Isabel não era igual ao dos outros”, explica Cláudia Loureiro.

Membro dos “Atípicos”, mas também de outros dois grupos do Facebook (“Movimento de pais pela inclusão” e “Mães, pais e cuidadores de crianças com necessidades específicas”), em conversa com centenas de outros encarregados de educação, Cláudia apercebe-se de que há uma certa “normalização da palmada”. “Dou por mim a pôr em causa coisas que faço. Não sou apologista de bater, mas sinto que sou mais tolerante.”

Esta mãe sente que a sua filha esteve muito protegida até aos 4.º ano, com professora única e uma auxiliar mais próxima. Agora, no 7º ano frequentado numa escola pública, a situação já muda de figura e o direito à educação, como se lê na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o direito a estar numa sala de aula, numa turma regular, é muitas vezes posto em causa. “A partilha de casos entre nós centra-se sobretudo na falta de meios para estas crianças. A minha filha, para estar numa sala de aula, necessita da presença de uma auxiliar; quando não há essa auxiliar, a Isabel tem de ir para uma unidade e eu luto para que não esteja lá o dia todo”, desabafa Cláudia.

No ano passado, Isabel foi vítima de uma agressão por parte de uma auxiliar.
A mãe não viu, o relato chegou-lhe contado por uma outra mãe que assistiu à cena, de um primeiro puxão de cabelo feito por Isabel à auxiliar, ao qual a adulta respondeu na mesma moeda.
Um mês antes, Cláudia já tinha sido chamada à escola porque a adolescente andava a fazer o mesmo a outros adultos, um comportamento que já tinha deixado de fazer desde a primária.

Inicialmente, foi feita uma queixa no agrupamento de escolas de Alapraia, com o conhecimento da Câmara Municipal de Cascais, responsável pela atribuição das auxiliares, mas o processo disciplinar foi entretanto arquivado pela autarquia e a auxiliar mantém-se a trabalhar na escola.

O que move esta mãe é “acabar com o corporativismo na proteção dos funcionários”.

Queremos defender os interesses das crianças e a efetivação dos direitos.

Isto que aconteceu é crime, agravado por ser nos exercícios de funções, sobre uma criança com deficiência grave.” Sónia Calheiros – Jornalista

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