O professor que pôs a Escola da Ponte no mapa mundo da educação está em Portugal e promete nova revolução. “Pela primeira vez no mundo vai acontecer a escola do século XXI”, diz. Um dos projetos será em Pampilhosa da Serra.
Numa conversa entre passado e futuro, ligados, lembra como foi parar em 1976 a Vila das Aves, onde a velha Escola da Ponte, depois de muita resistência, se tornaria a partir dos anos 80 um caso de estudo mundial – exemplo de ensino aberto, sem salas de aula, turmas ou testes, com objetivos de aprendizagem definidos quinzenalmente pelos alunos, associação de pais e professores tutores. Sente que nada acontece por acaso e que o seu caminho, que começou numa escola onde se aprendia a odiar, estava e está de alguma forma traçado. Em 2023, quer sair de cena, dedicar-se à escrita, que o apaixona, ou não se tivesse especializado nas letras e nas palavras, onde hoje tem colado o português do Brasil. Garante que tudo o que tem ajudado a mudar na escola tem fundamentação, ao contrário de aulas de 50 minutos, alunos em salas de aula todo o dia, anos letivos divididos em trimestres ou, como parece mais avançado, semestres. Para o provar, desafia “fraternalmente” o ministro da Educação, e quem queira, para o debate público.
Tem o seu nome associado à Escola da Ponte mas estamos num dos projetos mais recentes que ajudou a formar, uma comunidade de aprendizagem fundada por um pai, também sem divisões por idade e com planos individuais de aprendizagem. Tem quantos filhos destes pelo mundo?
Já não são bem meus filhos, são netos, bisnetos. No mundo, que tenha conhecimento, são uns milhares. Não poderei dizer que todos são comunidades, mas são locais, escolas, que estão tendendo para uma nova construção social de aprendizagem. Às vezes não sei se as pessoas têm noção disso mas esta que temos é originária dos séculos XVIII e XIX, um modelo de escola com mais de 200 anos, que correspondia às necessidades de há dois séculos. Temos alunos do século XXI, com professores do século XX, a trabalhar como no século XIX.
Costuma dizer que muito vem do que eram práticas militares, dos conventos.
É uma escola com origem na Prússia militar, de onde ficaram uniformes que algumas escolas ainda têm, a ideia de disciplina, os pátios. Com a primeira revolução industrial em Inglaterra veio a padronização do tempo, a segmentação. E depois teve influência dos conventos, dos mosteiros, a “cela” de aula. Tudo o que é ciências de educação, psicologia de educação, sociologia de educação, evoluiu, está no 4.0. A escola está no 1.0. Porquê? As escolas não são geridas pela pedagogia, são geridas pela burocracia.
Porque é mais fácil organizar desta forma uma escola pública que garanta acesso a todos?
O primeiro, já me disse, será a Pampilhosa da Serra.
Vamos começar, irei lá em outubro. Costumo dizer que quando alguém quer mudar alguma coisa enfrenta grandes obstáculos. Não é fácil. O primeiro obstáculo sou eu, a minha cultura profissional. O professor foi formatado para dar aula, para ter turma. Segundo obstáculo: os alunos. Quando dava aulas na universidade, ficava espantado como é que jovens de 20 e tal anos só queriam aula, não queriam aprender, não queriam pesquisar. Não vou dizer onde era assim.
Fez o mestrado em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Seguiu de certa forma as pisadas dele indo para o Brasil.
O Agostinho da Silva deixou escrito o seguinte: “Portugal desembarcou na África, desembarcou na Ásia, desembarcou na América. Só falta Portugal desembarcar em Portugal.” Nunca se deu muito valor ao que se fazia de inovador cá. Mas fui um privilegiado por conhecer os dois lados e agora quero ajudar a aproximar as margens.
Escreve numa das suas crónicas publicadas no Brasil que o Portugal da educação finalmente despertou. Quando é que sentiu esse despertar?
Uma oferta educativa direcionada sobretudo a crianças mais desfavorecidas, não foi?
Para todos, mas sobretudo para esses. Trabalhamos com muitas crianças de famílias monoparentais, crianças que o pai foi assassinado ou está preso. Barra pesada, como diz o brasileiro. E são esses os melhores alunos do Brasil. Dá para entender? Sinto-me muito motivado quando me escrevem com preocupações com educação e no fundo é isso que me traz aqui e que fez avançar com este projeto. E há uma coisa: a maior parte dos projetos que ajudo a fazer vêm das famílias, não vêm dos professores. Temos excelentes profissionais nas nossas escolas, mas têm medo de perder o emprego. Não gosto de generalizar, mas é assim. Vou trabalhar agora em vários agrupamentos de escolas com diretores extraordinários mas a maioria são mini-ditadores, autoritários e que impedem qualquer mudança. E continuando nos obstáculos, um terceiro é a força burocrática que tem o ministério. Um dia o Goucha, naquele programa da manhã, perguntou-me o que faria se fosse ministro. Respondi-lhe que faria um decreto: “extinga-se o Ministério da Educação”. Para que serve o Ministério da Educação?
Para promover uma política nacional?
É isso que falta hoje na escola, sede?
A alunos e professores. Falta que a aprendizagem tenha um significado. Sou da prática, mas não há prática sem teoria. Há três grandes correntes na educação. O paradigma da instrução, que é o que ainda temos maioritariamente hoje; o paradigma da aprendizagem, em que o centro já não é o professor mas o aluno. E este vem do princípio do século XX, com Montessori, Waldorf….
Pedagogias que só nos últimos anos se tornaram mais faladas.
Como se aplica isso num dia de aulas?_
Nos projetos que acompanho, as crianças aprendem no prédio da escola, na praça, no centro cultural, na floresta, na igreja, num trabalho sempre acompanhado ou por professores ou por familiares ou por vizinhos. A educação é integral, não é só o cérebro, é afeto, emoção, a ética, a estética, a espiritualidade. O ser humano é multidimensional. A escola que temos hoje, quando trata todos por igual ao mesmo tempo, não conhece ninguém. Existe um vazio entre professor e aluno e esse vazio alimenta solidão, que começa cada vez mais cedo. Hoje quando uma criança chora já não se mete a chupeta, mete-se um computador na mão e a criança vai passar a vida a movimentar os polegares sozinha, sem ver quem está ao lado. E o que transmite a escola? Não é só o que o professor diz. Quando um professor está sozinho a falar e um aluno está a ouvir não aprende autonomia, aprende individualismo. A autonomia é um conceito relacional, saber estar com os outros, construir com os outros. Costumo dizer até que a escola ensina corrupção.
É para provocar?
Quando um professor aplica um teste fica na sala. Para quê?
Para os alunos não copiarem.
Está a transmitir que os alunos são todos potencialmente desonestos. Mais triste ainda quando um teste não ensina nada. A preocupação com o termómetro não faz baixar a temperatura. E quando aparece uma criança com problemas em casa, os pais em separação, uma criança que sofre um trauma, o que é que acontece? Má nota é insucesso, vai para centros de explicações para tentar recuperar. De quê? Essa ideia de que o aluno é um ser não iluminado, que é preciso encher não de conhecimento mas de informação que ele esquece, não faz sentido. Dizem que sou contra as aulas, sou contra a aula em que o professor dá a mesma matéria a todos ao mesmo tempo e depois faz o teste. Experimenta fazer um teste hoje sobre o que foi dado e daqui a um mês. Deve claro haver avaliação, mas avaliação é outra coisa.
Como?
Como é que um professor com cinco turmas gere esse processo?
Um professor não tem turmas.
Um professor de Matemática com 100 ou mais alunos.
Como é que se entra na faculdade com evidências de aprendizagem?
Ainda há provas de acesso, mas hão de acabar. Os alunos hoje fazem exames, têm bons resultados. Em Portugal durante 15 anos, de 75 a 90, não houve provas de acesso. O ensino dito superior é um direito, não é obrigatório, mas é um direito. Haver um processo de acesso é ilegal. O que deve acontecer é com evidência de aprendizagens, não com notas, qualquer pessoa poder aceder ao direito à educação no ensino superior. Durante 15 anos queixavam que as notas no ensino secundário eram más porque não havia exames. Fiz estudos quando estava no Conselho Nacional de Educação dos resultados obtidos com a reintrodução dos exames. As notas eram mais baixas. Se fizer os mesmos exames aos mesmos alunos passado um ano não entrariam na faculdade, já esqueceram tudo. Para que é que andam lá a meter aquilo tudo na cabeça, a perder tempo, a gastar dinheiro? Isto está profundamente errado. E vai mudar, garanto que vai. Um dia houve um professor universitário que me disse: “Eu aprendi tudo na escola da aula”. E então disse-lhe: “Posso fazer perguntas sobre o que aprendeu?”. E ele “faça favor”. Quer que faça perguntas sobre o exame de acesso à universidade? “Já não me lembro”. Quer que lhe faça perguntas do secundário? “Pode”. Pois vou fazer do básico, disse. Fiz-lhe então as perguntas: sabe fazer uma raiz quadrada. Baixinho responde “não”. Passando para Portugal, quem descobriu os Açores? Ninguém sabe. Quantas vezes precisaste de usar raiz quadrada na tua vida? Porque é que a raiz quadrada está no currículo? Mas a questão é: aprenderam? Não aprenderam, tiveram aula sobre raiz quadrada, fizeram teste.
Voltando ao exemplo de um dia de um aluno nesse sistema de escola aberta. Como se organiza?
Geralmente ouvimos os professores a falar mal dos telemóveis…
Eu sei, o telemóvel tem tudo o que o professor papagueia, é um competidor.
Mas essa é a dinâmica para crianças de que idade?
E depois?
E depois continua a ter objetivos, há tanto para aprender, porquê ficar limitado a um programa? Se eu quiser saber o que é a raiz quadrada vou à internet e em cinco minutos aprendo. Tenho de aprender a aprender, a pensar. E isto hoje é evidente. A escola está a preparar para empregos que daqui a dez anos não existem. No tempo que temos inteligência artificial estamos a trabalhar como no século XIX. Claro que tem de haver aprendizagens essenciais, mas temos de dar às crianças oportunidade de se manifestarem, expressarem os seus desejos, a sua visão.
Como é que os miúdos circulam fora da escola?
Continuarão então a ser precisos auxiliares.
Sim mas os auxiliares são educadores. Nas escolas onde trabalho, a auxiliar que limpa os quartos de banho não limpa, ensina a limpar. Quem limpa são os professores e os alunos. Quem suja, limpa. No Japão é assim.
E os pais aceitam?
Se não aceitarem vão para o raio que os parta.
Pode haver aquela postura, então no ensino privado, de que não pagam para isso.
Estão a pagar ignorância. Estamos a falar de uma construção social nova, que dá significado ao que se aprende. Temos projetos com bancos de hora de voluntariado das famílias. Há avós que ensinam meteorologia popular, croché, não precisam de ir ao prédio da escola, estão em casa e os alunos vão lá. Cá, o que a nossa Lei de Bases do Sistema Educativo diz é que o sistema educativo tem participação dos dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias, de entidades representativas das atividades sociais, económicas e culturais, das universidades. Não diz “ou”, diz “e”. Mas o que é acontece na prática? A família atira para a escola. O ensino dito superior diz que eles vêm mal preparados do secundário; o secundário diz que vêm mal preparados do básico, o básico diz que vêm mal do jardim de infância, o jardim de infância diz que vêm mal preparados de casa e os pais dizem “para que é que tenho filhos…”.
Sentiu que a pandemia, tendo obrigado as escolas a adaptarem-se, foi uma oportunidade perdida para fazer diferente?
Nunca aprendeu nada na escola?
Andei na Gomes Teixeira no Porto e fui para montador eletricista.
Nunca lhe passou pela cabeça que ia ser professor.
Tinha de ir trabalhar.
Sim, fazia instalações de baixa tensão. Ganhava a vida ou perdia vida. E ele começa assim: “Estou com 50 anos de idade, 30 anos de profissão, sempre dei aula e quando o aluno não sabia, eu pegava na régua batia”. Isto era o que eu tinha aprendido na escola.
Também apanhou.
Pensa-se que as reguadas eram o “normal” mas muitas pessoas de gerações mais velhas ficaram com um trauma profundo, odiavam a escola.
Não se esquece. Assisti a esta cena na escola industrial: o professor era o engenheiro Celso, um indivíduo inqualificável. Entrava, pegava na caderneta, passava as folhas, parava num e dizia o nome. Já se sabia o que ia acontecer. Dava murro, pontapé, batia com a cabeça do aluno contra o quadro. Há uma frase em francês que é “a letra com sangue entra”. Um dia quando o professor Celso diz “Dimas tal” faz-se silêncio, ninguém se levanta e ouvimos começar gotejando a urina do Dimas. Dá para entender o medo? Isto foi o que aprendi primeiro, depois veio esse dia. Estava à porta a ouvir a palestra. O professor dizia: “Tenho 50 anos de idade, 30 de profissão, durante 20 anos dei a minha aula castigando os alunos. Há uns 10 anos um aluno não me soube responder e castiguei. A criança não chorou, olhou para mim e perguntou: ‘Porque é que nos bates, porque é que não nos ensinas?’”. Contou que naquela noite não dormiu, falou com aquele jovem, com outros, mudou radicalmente. No dia seguinte fui à escola dele ver o que era. Estava muito cético, aquilo parecia teatro. O que vi? Hoje sei o que era: Montessori, Ferrière, Claparède, Decroly, Freinet.
O movimento da escola moderna.
Nos últimos anos houve medidas de flexibilização curricular, não pode ser por aí?
São paliativos do modelo obsoleto da aula, está esgotado há mais de 100 anos. Porque é que há disciplinas, porque é que se passa de trimestre para semestre, porque é que há ano letivo, alguém sabe? As pessoas não sabem que cada jovem é único, tem um estilo de inteligência predominante, tem um ritmo próprio que não é o do outro e não é o do professor. Isto sabe-se há mais de 100 anos e a mudança vai acontecer. Como? Criam-se núcleos de projeto, as pessoas encontram-nos valores que partilham e encontram formas de o implementar nas escolas, na comunidade. E isto tem fundamento teórico, um ano por semestres não tem, uma aula de 50 minutos não tem. A partir daí os pais vão procurar escolas onde haja professores que não tenham morrido, como costumo brincar. Hoje os projetos educativos das escolas são extraordinários mas os professores não os conhecem. Já li milhares e todos escrevem: vamos fazer alunos cidadãos, autónomos. Pergunto: Como é que nas aulas se desenvolve autonomia? Desenvolve-se o contrário, dependência, egoísmo, corrupção. É uma falsidade ideológica dizer isso, é crime.
Se a escola não mudar, o que imagina que acontecerá?
Com menos alunos, as escolas no interior foram fechando. Será essa a tendência, concentrar?
Declaração Mundial sobre Educação para Todos, 1990, o princípio de educação ao longo da vida. Portugal subscreveu mas parece que não se lembra. Há 40 anos acompanhei um homem chamado Rui D’Espiney, que criou o projeto Escolas Isoladas, com uma dimensão comunitária. O que aconteceu depois? Fecharam-se as escolas, fez-se desaparecer comunidades. Se tivermos 10/15 anos em comunidade escolar, não são só elas a aprender, é toda a aldeia. É isso que queremos também desenvolver. Uma comunidade de aprendizagem é isso mesmo, uma partilha de valores, de necessidades, de desejos, no território. E envolver as famílias. Nos primeiros dez anos da Ponte fizemos reuniões de pais de 15 em 15 dias. Eram 40 por ano.
E os pais iam?
Foi a sua área de especialização, ensinava com frases não era?
Sei ensinar de 25 maneiras. O pai diz-me aquilo à frente de toda a gente. Respiro fundo: “Senhor, qual é o seu emprego?”. “Tenho um gabinete de contabilidade”. Pergunto: “Eu na segunda-feira posso ir ao gabinete?”. Disse que sim. “Quando lá chegar posso dizer que não concordo com a maneira como trabalha?”. “Não”. “Então cale-se”. Ouvimos os pais mas também explicamos o que fazemos.
O que o levou para especializar-se em leitura e escrita?
Sabem ler ou decoram?
É ler. Vou dar um exemplo mais radical. Quando conto estas coisas os meus amigos da Waldorf matam-me: “Não pode, só depois da segunda dentição”. É o que se chama fundamentalismo, isto são autenticas religiões. Uma amiga quando o filho nasceu perguntou-me se queria ensiná-lo a ler. E eu “calma”.
Quando nasceu?
Como se ultrapassa?
Tem de haver formação de professores, especialização. Em vez disso o que a escola faz é homogeneizar. E depois acusa a família, que não há livros em casa, ou que o pai é analfabeto, que são pobres.
Famílias mais instruídas não têm filhos com maior sucesso académico?
Indo ao início, faz agora 45 anos que chegou à Ponte. Como foi parar a Vila das Aves?
Tudo começa em 1970, sem que eu soubesse que existia a Escola da Ponte. “Amei-te muito antes de te conhecer”, como diz o Pessoa. Em 1970 comecei numa escola particular no Porto. Em ‘72 vou para a Escola da Torrinha no Porto, havia preferência de homens para as escolas masculinas. Mais uma história. Tenho irmãos mais novos 20 anos. Um dia estávamos na varanda da casa da minha irmã Paula e o marido dela, que infelizmente já faleceu, pergunta-me qual é a melhor escola do bairro. Respondo-lhe: “em todas as escolas há bons professores”. E ele diz não é bem assim, tive um professor que fez de mim tudo o que sou hoje e outra que era uma cabra e me tirou da escola. Dizia “tens piolho, andas descalço, vai embora”. “Não quero saber da cabra, como era o outro?”, perguntei-lhe. “Era diferente, ia connosco jogar à bola, tirava-nos os piolhos, ensinava-nos a ler de maneira diferente.” Gosto muito de escrever crónicas e já ia escrever sobre aquele professor. Pergunto-lhe como ele era: “Era mais ou menos da sua altura, tinha o cabelo pelo fundo das costas, barba enorme, andava sempre de negro e tinha sandálias”. A certa altura pergunto-lhe: em que ano foste para a escola? Em 1972. Em que escola andaste? “Na Torrinha”. Era eu o professor.
Andar de cabelo comprido devia ser logo motivo para comentários.
Era do PCP?
Nunca fui de nenhum partido, mas estava na luta contra o fascismo. Conheci pessoas como o Zé Saramago, aprendi muito com eles, era um moço de recados. Perdi muitos companheiros na tortura. Fui metido na tropa à força e todos os colegas professores foram para a amanuense, a tropa de escrever, não iam para o mato. Eu que sou o único estrábico puseram-me em atirador de infantaria, para me eliminarem. Tinha estado na Guiné como infiltrado, no meio da guerra, sabia como era. Percebi que tinha de ficar para não morrer, porque se fosse morria – mesmo que conseguisse matar alguém não o faria porque era pacifista. Abre um concurso em que oito poderiam ficar cá a dar instrução. Éramos 3200, decorei tudo, fiquei em oitavo. Entrei nas Caldas da Rainha, entrei em Tavira. Liguei-me aos movimentos contra o fascismo, fui operacional no 25 de Abril com as operações especiais de Lamego. Um dia conto essa história. No dia 18 de abril de 1975 fui trabalhar para Macieira da Lixa, levei para lá o padre Mário, fizemos um projeto extraordinário comunitário. Depois concorri de novo e fui para Ferreira, em Paços de Ferreira, em setembro de 1975.
Já ia em três escolas.
Mesmo assim não quis ficar em Ferreira.
No resto do ano, com a má consciência de me poderem ter matado, davam-me tudo. As melhores febras quando matavam o porquinho, ovos, arranjavam-me uma casa para eu ficar mas havia aquela resistência a fazer diferente e eu disse aqui não fico. Cheguei a pensar deixar a profissão, não estou para isto. Ainda disse à minha companheira vou voltar para eletrotecnia. Na altura ganhava 20 mil escudos e fui ganhar 1100 como professor, nove vezes menos. Foi a melhor coisa que fiz e voltava a fazer. Ela diz: “Tenta uma vez, só mais uma vez”. Havia concurso, peguei na lista e a primeira freguesia era Aves. Havia duas vagas, Ponte e Quintal. “Ponte”, pensei, que metáfora para aquilo que eu quero fazer. E ela muito bem, mete a cruzinha. Nem sabia que havia uma Escola da Ponte, nem uma Vila das Aves. O resto é conversa para uma semana. A primeira associação de pais em Portugal foi na Escola da Ponte. O jornal escolar mais antigo do mundo é o da Ponte. As crianças descobriram que era vila dos aves mas não dos pássaros, dos rios Ave. Fizeram pesquisa. Levaram a comissão nacional do ambiente a criar o processo de despoluição do Rio Ave. É uma das melhores escolas do mundo.
Como foram os primeiros tempos?
Quem eram?
Os alunos que não aprendiam. A diretora disse: “Você que é homem vá, porque a professora do ano passado foi para o hospital, partiram-lhe um braço e a cabeça”. Eram miúdos de bairro operário, com família na França, Austrália, Alemanha, muitos sozinhos com os avós. Não havia quarto de banho, iam urinar e defecar no meio do mato. Um dia pergunto à diretora: “Onde estão os pais? Se vão à missa, ao futebol, porque é que não vêm à escola?” Ela diz-me “vá à tasca”. Chego à tasca, sento-me. Entrou um homem, sou estrábico mas lá vi agarrado à perna dos homens um aluno meu, o Sérgio. Pergunto se quer conversar comigo. “Sim, claro, nunca tinha falado com um professor”, diz. Fomos para casa dele, traz dois banquinhos, uma garrafa de vinho tinto e dois copos. Entrei em pânico, não bebia vinho. Ele enche, eu começo a falar e ele não abre a boca. Eu falava e não bebia, ele não falava. Bom, comecei a beber, ao fim de quatro ou cinco copos já ouvia tudo torto mas ele também falava. Vi depois numa tasca: “quem não bebe não é de confiança”. No dia seguinte estava ele na escola e mais três pais, que foram os primeiros a ir à escola. Foi com esses pais que comecei a trabalhar. Em 1982 vieram a Maria José e a Maria Luísa e aí constituímos uma equipa de três professores. Em 1986, o ano da lei de bases, conseguimos tacitamente o reconhecimento de autonomia, estava toda a escola no modelo de escola aberta e eu era diretor. Comecei a ir para a Europa, sempre que o ministério queria apresentar uma escola eu ia. Corri a Europa toda, estou muito grato à Ponte.
Mas sentiu que foi aquele lugar, aqueles alunos ou que era algo que iria acontecer?
Foi o que o levou para o Brasil ou foi o cansaço com Portugal?
Nunca estarei chateado com Portugal, tenho consciência de que nasci num tempo de transição e que ninguém faz nada sozinho. A maior parte das pessoas com quem trabalhei já morreram. Quando vejo escolas com o meu nome, salas com o meu nome, detesto. Vou para o Brasil porque lá eu aprendo e emociono-me.
Costuma dizer que é no Sul que está o futuro. Mesmo nestes anos com Bolsonaro, continua a acreditar?
Porque é que acha, ainda assim, que o futuro vai ser construído no Sul?
Um dia estava aqui na Europa e alguém dizia: a inovação está aqui no Norte. Respondi: “está enganado, um dia vai ver. Vai vir um tsunami educacional de sul para norte que vai varrer tudo”. É o que testemunho todos os dias. Há quatro coisas que aqui no Norte não existem. 75% das crianças brasileiras moram em favela. A favela, tirando as milícias, o tráfico e a prostituição, são comunidades de pessoas extraordinárias. Aprendem a resiliência. Lá dentro há violência extrema, mas as pessoas são maravilhosas. Autónomas, cooperantes, solidárias e éticas. Depois temos as comunidades indígenas, pré-colombianas. Um índio a ensinar os seus filhos é uma autêntica lição de pedagogia, as crianças têm autonomia. Depois a influência de tantas nacionalidades, portugueses, italianos, japoneses, por aí fora, que levam criatividade, tecnologia social, tudo isso. E finalmente tem negro, afro-descendente, que diz que é preciso uma tribo inteiro para educar para uma criança. Juntando isto tudo, é uma sociedade com mais sustentabilidade, mas não é essa sustentabilidade que falam para aí. Sustentabilidade é educação, aprendizagem, solidariedade.
O que o incomoda mais hoje quando entra numa escola?
Escreve aos seus netos do futuro, a falar do tempo da velha escola, que os deuses se zangaram com o ser humano e proibiram o homem de ensinar.
Começou hoje a carta 575. Devo ir até 800ª, até voltar ao Brasil. Nessa altura o homem já mordeu o cachorro (risos).
Com todos os altos e baixos, o último século foi contudo o da democratização da escola. Teria sido possível de forma diferente?
Psicologizou-se o desenvolvimento?
Como se a pessoa só tivesse cognição, não tivesse mais nada. Sentimento não há. Piaget era zoólogo, Vygotsky era psicólogo e Wallom era político. Montessori era médica. E se isto continua é mais medicação.
Mais ritalina?
Só um 1% dos professores têm menos de 30 anos. Como se ultrapassa?
Não é pagando mais, também, mas dando oportunidade aos professores de melhorar a cultura pessoal e profissional. Onde não há uma pessoa não se pode colocar um professor. A maior parte dos professores morre aos 20 anos e aos 60 anos – passam a vidinha à espera da reforma e depois da aposentaria nunca mais ligam à escola.
Nunca perdeu a chama?
E se fosse ministro este ano letivo, o que decretava?
Se fosse ministro escutaria a pessoa que está a seguir a ele, João Costa, que é das ciências de educação e é a primeira pessoa que sabe o que faz. O ministro é político, não sabe nada de educação. Aliás os ministros não sabem nada de educação, sabem a escola que tiveram. E insisto. Fraternalmente convido quem quer que seja, mas de preferência o ministro da Educação, para debater publicamente o que é uma escola e porque é que esta escola condena à ignorância a maioria.