Clara Boavista: “A escola pública está preparada para ensinar as massas. Não faz sentido”:

A escola pública necessita de uma reorganização. Os professores estão desmotivados e os alunos não são o centro dos projetos. Pais deviam ser envolvidos no sucesso educativo. Estas são algumas das ideias expressas por Clara Boavista, doutorada em Educação, no livro O Diretor de Turma, perfil e múltiplas valências em análise.

É da responsabilidade dos professores, da família e demais elementos da comunidade educativa a promoção do sucesso educativo dos alunos, fazendo tudo o que for possível para essa concretização. Nesse sentido, os professores têm a responsabilidade de garantir um clima propício à aprendizagem e facultar aos alunos o desenvolvimento das suas capacidades, ajudando-os a ultrapassar as suas dificuldades. Por outro lado, a família deve ser rigorosamente esclarecida, pelos gestores pedagógicos intermédios da escola, de que a sua colaboração no processo educativo é imprescindível. Estes gestores devem ajudar as famílias, num trabalho colaborativo sério e facilitador de relações de confiança, para o cumprimento deste objetivo.

As várias reformas educativas nas últimas décadas ajudaram ou atrasaram a modernização da organização escolar?
Tiveram impacto no trabalho desenvolvido no interior das escolas, fragilizando-o com as várias mudanças sucessivas na legislação, na medida em que os docentes tiveram de despender mais tempo do seu trabalho em longas reuniões destinadas à sua interpretação, desviando a atenção daquilo que era o trabalho essencial. Penso que em nada contribuíram para a modernização da organização escolar e ajudaram a perpetuar o status quo que há longo tempo lidera o modus operandi na organização escolar.

O diretor de turma é um docente que desempenha um cargo importantíssimo na organização escolar. Ele é detentor de competências que, muitas vezes, não sabe ou não consegue utilizar, por falta de preparação para o exercício do cargo que desempenha ou por falta de confiança face à dúbia clareza de funções que caracterizam as próprias estruturas organizacionais da escola, e que, por força das circunstâncias, é nomeado pelo diretor escolar para cumprir a tarefa.

Fruto de inconsistências no exercício do cargo, o diretor de turma vê-se colocado numa posição desconfortável, nomeadamente, face aos seus pares e às famílias, facto que dificulta o seu trabalho relativamente ao grupo de alunos da turma que lidera. Essas inconsistências são consequência da descaracterização das estruturas organizacionais da escola no campo da orientação educativa. Defendo que deveriam ser atribuídas mais competências deliberativas ao diretor de turma e reforçadas as que lhes estão designadas.

Quanto à falta de professores, isso é um assunto que não deve condicionar a nossa visão dos problemas emergentes na organização escolar. O problema da escassez de professores é o resultado da má política na Educação, pelo que deve ser remediado o mais rapidamente possível, em sede própria, pelos órgãos que têm responsabilidade nesta matéria.

Há demasiados cargos na estrutura organizacional das escolas?
Não considero que existam demasiados cargos na estrutura organizacional da escola. A escola é uma organização complexa e, como tal, é necessário que haja uma descentralização de poderes para dar cumprimento às múltiplas tarefas que nela decorrem e aos diferentes objetivos a que se propõe alcançar.

O facto de a escola pública ter de responder a todos os alunos independentemente das suas características deveria obrigar a uma organização diferente?
Sim, claramente. Não existe um acompanhamento sistematizado e individual do aluno, embora os professores se esforcem improficuamente por fazê-lo, através de tentativas personalizadas, quer por parte do professor da disciplina quer por parte de outros professores que colaboram pontualmente em sala de aula. Vão acudindo os alunos com maiores dificuldades, embora eu não acredite nos resultados escolares positivos que daí possam advir. Não nos podemos esquecer que há aulas onde o barulho impera, o que inviabiliza este tipo de trabalho colaborativo. Também no que concerne à avaliação, há esforços no sentido de atribuir resultados escolares positivos aos alunos, exigindo-lhes menos, mas sem nenhum significado proveitoso para o aluno, a não ser a sua transição de ano.

Refiro-me a um acompanhamento sistematizado do aluno, tendo em conta as suas aptidões, cultura vocacional e projeto de vida.

A escola não consegue alcançar este objetivo com a atual organização pedagógica vigente, uma vez que não existe um suporte organizacional eficaz para este acompanhamento do aluno. Teremos de o implementar, se quisermos colocar o aluno no centro da aprendizagem.

Não há uma visão única de organização entre diretores de escola e de turma? Como se explica essa situação?
Não há, o que é justificável pelo facto de desempenharem funções distintas na organização escolar e, por isso, terem uma visão diferente quanto ao funcionamento da organização.

Regra geral, os diretores de escola têm uma visão global da instituição que lideram, preocupados na globalidade da sua máquina operativa, em fazê-la funcionar, e focados na concretização de objetivos gerais a que a mesma se propõe alcançar, nomeadamente, para poderem responder às múltiplas exigências face ao processo de avaliação externa das escolas. Preferem um menor número de figuras intermédias/coordenação e níveis de decisão, sendo uma visão mais centralizadora do poder.

Na sua tese refere que falta motivação e formação aos docentes para assumir cargos de coordenação. Qual é a chave para alterar essa situação?
Os professores esforçam-se por motivar os alunos no processo de ensino-aprendizagem, mas, na verdade, os órgãos centrais esquecem que, para isso, os professores têm de estar motivados para o enérgico exercício da profissão docente – com um grau de exposição elevadíssimo face a toda a comunidade educativa. A falta de amor revelada na relação entre a tutela e os professores tem sido notória, ao longo do tempo, e este facto conduziu inevitavelmente a que os professores fossem tentados a desprender-se da relação de ser professor.

A falta de motivação é transversal a muitos docentes que, no exercício das suas funções, lhes falta ânimo suficiente para lidar com situações de conflito, resolver os problemas decorrentes de cargos, abdicar de horas em família para preparar reuniões e apresentar resultados, elaborar relatórios (por vezes, sem qualquer benefício em prol da atividade educativa dos alunos), avaliar colegas de profissão e um sem-fim de outros assuntos emergentes da atividade de coordenação.

Não existe uma chave única para motivar os docentes a assumir cargos de coordenação, mas é possível facultar formação nesta área e, sobretudo, escolher um profissional cujas características pessoais facilitem/assegurem o bom desempenho de funções de coordenação. Designar um docente para assumir estas funções de acordo com o seu perfil não é tarefa fácil, mas arregacem-se as mangas e criem-se condições para que essa escolha não seja um “tiro no escuro”.

O aluno não é o ponto central da organização da escola pública?
É um facto. A organização da escola pública está preparada para ensinar as massas, partindo da premissa de que os alunos são semelhantes nas suas vivências, modos de ser e também nos seus desejos quanto ao futuro. Há um século poderia fazer sentido esta abordagem, mas já não faz qualquer sentido.

Torna-se muito mais fácil continuar a ensinar todos os alunos como se de um só se tratasse, tentando pontualmente implementar medidas de apoio à aprendizagem, quando a situação é encarada como justificativa. Mas não considero que seja uma abordagem séria ao problema. É remediar uma situação que, à partida, será apenas resolvida em papéis burocratizados. Quanto à valorização do desenvolvimento do aluno, penso que seja diminuta, sem nenhuma expressão e consequências positivas.

Muitos docentes não estão habilitados para refletir sobre esta matéria, que considero complexa e geradora de muitos constrangimentos ao nível da sua implementação e, como tal, não compreendem, com clareza, o funcionamento da organização escolar. O processo de implementação de mudanças no sistema é muito difícil e delicado. Mudar a representação que as pessoas têm da organização da escola é algo extraordinariamente difícil, motivo pelo qual se perpetuam modelos desajustados da realidade e das necessidades da sociedade.

Carlos Ferro- cferro@dn.pt