Em dois dias, casos de Covid-19 passam barreira dos dez mil. O país está a braços com 417 surtos ativos. E os alarmes voltaram a soar em relação ao agravamento da mortalidade com os 118 óbitos registados ontem. Na próxima semana, estima-se 12 mil casos diários e mais de 120 mortos. “Janeiro vai ser um mês duro”, dizem especialistas. “É preço do Natal”.
Eao terceiro dia desta semana o país atinge os 10 027 casos de covid-19, depois os 9927 e ontem os 10176. Os mortos passam de 93, 95 para 118 e todos os alarmes começam a soar. Quem está nos hospitais pede confinamento geral, mas há também quem afirme que esta já não é a solução e que, agora, só “é preciso proteger os mais velhos”. Mas para todos o mês de janeiro vai ser muito duro e que pouco ou nada conseguirá evitar o impacto das últimas semanas de dezembro e o aligeirar de medidas durante o Natal.
Os resultados estão à vista: duas semanas depois Portugal tem 417 surtos ativos, 323 na região de Lisboa e vale do Tejo (121 em lares), 55 na região do norte, 25 na região do centro, 29 no Alentejo e 24 no Algarve. Nos hospitais, há 3451 doentes internados em enfermarias e 536 em unidades de cuidados intensivos (UCI).
O cenário é dos piores desde o início da pandemia. As próprias unidades da região de Lisboa admitiram estarem a atingir a linha vermelha dos planos de contingência. A ministra da Saúde, Marta Temido, pediu esta semana às unidades de Lisboa que suspendessem toda a atividade programada e que elevassem para o nível máximo os planos de contingência.
“Estamos a pagar o preço da decisão política de dar o Natal às famílias. O que isto conseguiu foi que algumas famílias passassem o seu último Natal juntas, porque se permitiu aligeirar as medidas numa das piores alturas do ano, o inverno”.
Para quem trabalha nestas unidades, o mês de janeiro vai ser muito duro. O médico intensivista do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, Philip Fortuna, admitiu mesmo: “Vai ser caótico.” Para este médico pouco ou nada pode ser feito para evitar o impacto da decisão política tomada no Natal. “Estamos a pagar o preço da decisão política de dar o Natal às famílias. O que isto conseguiu foi que algumas famílias passassem o seu último Natal juntas, porque se permitiu aligeirar as medidas numa das piores alturas do ano, o inverno, e já estamos a sentir os efeitos de há 15 dias. Depois, vamos sentir os efeitos do Final do Ano, em que o maior número de pessoas contaminadas serão os mais jovens que depois foram para casa contaminar as famílias.”
Os 118 mortos de ontem fizeram soar os alarmes, mas este número só confirma o que especialistas em saúde pública e epidemiologistas têm vindo a dizer: uma das principais consequências da covid é o agravamento na mortalidade, sobretudo nas faixas etárias mais idosas. Mas não só, outra das consequências é o agravamento das situações dos doentes não covid. “Neste momento, tenho a unidade cheia de casos covid, a maioria dos doentes abaixo dos 65 anos, são doentes que levam muito tempo a recuperar, portanto o que fica para trás são os doentes não covid e as suas cirurgias”, explica o médico
Para Philip Fortuna, também coordenador do programa ECMO – Oxigenação por Membrana Extracorporal do CHULC -, esta semana é o resultado do Natal, mas a próxima será o resultado do Natal e do Fim do Ano, e nas semanas seguintes estaremos perante o resultado dos que foram contaminados já por estas pessoas. “O que for feito agora só terá repercussões em fevereiro e até lá vai morrer muita gente, quer se queira quer não, um doente covid é sempre prioritário. O seu estado agrava e temos de tratar os doentes mais graves”, reforça.
O médico fala ao DN num dia em que cumpre 24 horas de urgência e em que tem a unidade de cuidados intensivos do São José cheia. “Isto é o pior que nos poderia acontecer agora. Vamos morrer na praia, atingimos a rutura numa altura em que já há vacina e em que começamos a desenhar a solução para o problema”, criticando: “Tudo se deve a decisões políticas. A decisão de aligeirar as medidas no Natal foi política, não foi uma decisão da saúde, porque quem está no terreno sabe que isso não deveria acontecer.”
Uma das maiores consequências do aumento de casos é o agravamento da mortalidade.
A tendência é para que esta realidade aumente de dia para dia. “Não vai parar de crescer tão depressa.” Aliás, e como refere também o especialista em saúde pública do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), Tiago Correia, os modelos matemáticos da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa indicam que na próxima semana chegaremos aos 12 mil casos e que os óbitos diários deverão passar os 120. “Vamos enfrentar dias muito difíceis. Neste momento ninguém se pode iludir quanto a isso. Estes dez mil casos infetaram pessoas, e o número de casos vai aumentar de novo a partir de terça-feira, quarta, quinta e sexta. As estimativas da Faculdade de Ciências de Lisboa apontam para uma clara tendência de crescimento”,explica.
Só Lisboa teve mais de quatro mil casos
Neste momento, há mais de três mil doentes com covid internados nos hospitais do país inteiro, 536 em UCI, o pior número desde o início da pandemia registado agora e no dia 29 de novembro. Os internamentos sucedem-se e na região de Lisboa, a que está em maior pressão, há 4291 novos casos e 44 dos 118 mortos. Algumas unidades admitem já a contratação de camas de cuidados intensivos aos privados.
Philip Fortuna diz que estamos a pagar o preço da decisão política de não haver restrições no Natal.
O Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) tinha ontem 160 doentes internados com covid, destes 36 em cuidados intensivos. Mas ontem mesmo teve de aumentar a sua capacidade total para 210 camas, nas enfermarias passou de 120 para 160 camas e nos cuidados intensivos de 36 para 48 camas. Ao DN, fonte hospitalar referiu que este aumento de camas para a covid será compensado também com mais camas para doentes não covid, devido à época que estamos a atravessar.
Em Almada, o Hospital Garcia de Orta abriu ontem mais quatro camas em UCI, a sua capacidade é de 28 camas – 19 para covid. E ontem tinha 123 doentes internados, 105 em enfermarias e 18 em UCI. O Garcia de Orta é mesmo a unidade que admite que se a situação piorar irá negociar com unidades privadas camas em cuidados intensivos para poder prestar cuidados aos seus doentes. Na zona centro, os Hospitais Universitários de Coimbra tinham ontem 198 internamentos por covid em enfermaria e 47 em UCI. A lotação máxima nas enfermarias é de 208 camas, embora possa ir até às 233, e nos cuidados intensivos é de 53. No norte, O Hospital São João tinha ontem 105 doentes internados com covid, destes 34 em cuidados intensivos.
Confinamento pensado concelho a concelho
O intensivista Philip Fortuna diz não ser especialista em saúde pública nem epidemiologista quando lhe perguntamos qual a melhor solução: confinamento geral ou não. Mas na sua opinião há já muitos portugueses que estão a fazer confinamentos profiláticos por terem estado em contacto com casos positivos, portanto o melhor seria adotar essa medida. E explica: “Para mim há duas situações de maior risco em termos de contágio, as refeições, e nas empresas, e há muitas destas que deveriam estar em teletrabalho e não estão. Se queremos diminuir os riscos alguma coisa tem de ser feita”, sustenta.
Quanto a um possível confinamento geral diz: “Um confinamento geral ou por concelhos só deve ser definido com base em dois pressupostos. O primeiro é quando os cuidados de saúde estão em rutura, não dão resposta aos doentes agudos e as unidades de cuidados intensivos estão na sua capacidade máxima; o segundo quando há um descontrolo na vigilância epidemiológica – ou seja, quando já não há capacidade para fazer inquéritos epidemiológicos e rastreios em tempo útil. Se há alguns concelhos que estão nesta situação há que equacionar o confinamento total para estes, se é o território todo que está nesta situação então não há outra solução senão o confinamento geral.”
Tiago Correia defende que confinamento geral deve ser pensado concelho a concelho, região a região.
Nesta semana, e em 24 horas apenas, Portugal registou um aumento de casos da ordem de mais de 5%, “nunca tínhamos assistido a uma coisa assim. A continuar é impossível as equipas de saúde pública manterem a vigilância epidemiológica, não há recursos disponíveis, é ingerível”. Para Tiago Correia, “há já descontrolo das cadeias de transmissão e um progressivo esgotamento da capacidade hospitalar. Agora a questão é: isto está a acontecer no território inteiro? É possível delimitar o território e os concelhos nesta situação? É uma dúvida que tenho, mas sei que é uma decisão que não se toma com facilidade”.
O especialista em saúde pública salienta ainda que Portugal é um país muito vulnerável, não só do ponto de vista epidemiológico, porque tem uma população muito envelhecida e uma carga muito elevada de mortes por pneumonias e gripes durante o inverno, mas também do ponto de vista económico.